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Teresa Adão da Fonseca
“From organic materials, colors and other natural elements, the practice of Teresa Adão da Fonseca reacts to time and space, in a constant investigation of ancestral techniques and knowledge.  She tells us that it is in that continuous making that she places herself – in that intermittence of time –, where the mediums cross and transform themselves, be it through painting, drawing, sculpture, photography or installation. To the fertility and growth of the natural world, Teresa Taf crosses her own experience as mother, exploring the possibilities of being with the world. In this atlas of relations, it is essential for her to work in community, which unfolds in educational and social initiatives. This is the case of Projectos em Colectivo, supported by Direção-Geral das Artes, which promotes awareness for the arts, through artistic expression and body movement in Prison Establishments.”





Luz mais Luz
Galeria Presença


“Consta que no leito da sua morte, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), expoente figura do Iluminismo e autor do poema trágico “Fausto” (1808), proferiu como últimas palavras: “Lich, mehr licht” (Luz, mais luz). Esta ideia foi veiculada pelo médico Carl Vogel (1798-1864), num ensaio sobre a história médica de Goethe, no “Journal der Pratical Heilkunst”. O inusitado é que, supostamente, Vogel não estaria presente no referido momento. Pelo que se pode confabular que tais palavras sustentam um aspeto simbólico, um género de epitáfio de teor Iluminista e de fantasmagoria apolínea, num desafio para a clareza, a verdade e o conhecimento.

Inspirada por este ‘grito’ de Goethe, a artista Teresa TAF traz para a sua exposição, patente na Galeria Presença entre 21 de setembro e 9 de novembro de 2024, um conjunto de pinturas alicerçadas numa declarada avidez por luz que alumie essas águas profundas e voláteis que surgem como ignição, para uma investigação sobre o âmago da interioridade do ser. E do silêncio das suas profundezas, como espaço de refúgio, de retiro e de encontro. A artista intima-nos, assim, para um encontro com o seu lado mais pessoal e intuitivo, consubstanciando Bachelard que defende ser “necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz.” [1]

Para a concretização do seu trabalho, a artista procedeu, no seu atelier, à transformação do pigmento natural extraído da planta herbácea Isactis Tintoris, resultando numa “receita única e irrepetível” de Indigo. [2] Um espaço artístico, o atelier, cede a uma transfiguração subliminar como ‘laboratório’ de experiências, e acolhe um compromisso, onde a criatividade alquímica, da artista, alude à produção pré-industrial das tintas. Trazendo à memória tempos de outrora, em que maior parte dos pigmentos provinham dos minerais, de terras, de plantas ou mesmo de insetos.

As manchas abstratas, que compõem as pinturas, reivindicam essa essência do pensamento das águas - o “psiquismo hidrante” - de que nos fala Bachelard. [3] Sendo que a água, como epitomiza o filósofo, reflete e tem fundo, por isso podemos utilizá-la como espelho ou janela. Refere a artista que “os materiais e texturas utilizados trazem luz e vida nos seus elementos naturais, nomeadamente na água recolhida in loco, em rios, ribeiros e riachos, com os seus minerais e micro-organismos.” [4] O Indigo é utilizado em versões mais diluídas, claras e transparentes e em outras mais saturadas, em camadas sobrepostas de tinta, que resultam num universo mais escuro, profundo e denso, um veludo noturno. As composições de manchas multiformes, numa espécie de ‘vivacidade’ fixada, revelam a qualidade poética da imprevisibilidade dos resultados, que a matéria providenciou.

Este declarado respeito pela matéria e as suas propriedades, “em gestos de pertença, de abertura, e de partilha” [5], num exercício plástico de expressar interioridades, apresenta uma similitude com algumas premissas do manifesto do Grupo Gutai [6]. Os seus integrantes declararam perseguir, com entusiasmo, as possibilidades da criatividade pura. Acreditando que a fusão das qualidades humanas e das propriedades materiais providenciavam uma compreensão, mais concreta, do espaço abstrato.

A integração das obras no espaço da galeria contempla, por um lado, as mesmidades que nos orientam para a apresentação convencional da pintura, ou seja, emoldurada e pendurada na parede e, por outro, formas disruptivas dessa formalidade que a historiografia da arte já vem documentando desde o século XX. Desfronteirizações que levaram Rosalind Krauss à teoria de “Campo Expandido” e aos seus quadrados estruturalistas.

Na primeira sala, as pinturas de Teresa TAF encontram-se penduradas na parede ou sustentadas por fios, neste caso detendo-as na liminaridade da Instalação. No entanto, a forma como são agregadas ao suporte expositivo revela contornos particulares. Placas transparentes, sem caixilho envolvem, parcialmente, o papel de algodão. Pelo que, parte da pintura se estende para lá dos limites do suporte. Como água que transborda do seu receptáculo. Um outro pormenor, associado a uma das obras, merece igualmente destaque.

Uma das pinturas tapa, também de forma parcial, um espelho. Este que é matéria construída e civilizacional, que acolhe o engano e abraça o onírico, duplica e aprisiona um mundo que, paradoxalmente e ironicamente, lhe escapa. Esses pedaços de espelho, a descoberto, permitem o nosso reflexo. E se “o que vemos só vale - só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” [7], como refere Didi-Huberman, então neste caso parece imperar um confronto com nós mesmos, com a nossa interioridade, auxiliado pelas obras que a artista nos dispõe para contemplação. E nas quais, também, extravasou o seu íntimo. Proporcionando encontros desencontrados. Metafóricos. Metafísicos.

Na segunda sala, duas obras suspensas e expostas como uma espécie de assento de baloiço, onde se vê, o que parecem ser, formas ampliadas de microrganismos, criam uma disrupção com a fórmula convencional que as outras obras, que habitam o espaço, são apresentadas. Algumas pinturas mostram ser o resultado de sobreposições sucessivas de camadas de tinta. Resultando em abstrações onde parecem habitar águas soturnas e escuras que contemplam mistérios e abismos. Um possível reflexo nessas águas, já só nos devolveria a singularidade da silhueta de um corpo aglutinado à escuridão. E, no fim, restava-nos a clarividência de Goethe. “Luz, mais luz”, como grito para emergir. “

Notas

[1] Bachelard, G. (1998[1989]). A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes editora, pp 1-2
[2] Teresa TAF (2024). Luz mais luz [Folha de sala].
[3] Bachelard, G. (1998[1989]). A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes editora, p.6
[4] Teresa TAF (2024). Luz mais luz [Folha de sala].
[5] Ibidem
[6] O grupo Gutai foi formado em 1954, na cidade de Osaka no Japão, e teve como constituintes Kanayama Akira, Murakami Saburo, Shiraga Kazuo, Shozo Shimamoto e Yoshihara Jiro.
[7] Didi-Huberman, G. (1998). A inelutável cisão do ver. In O que nós vemos, O que nos olha. São Paulo: Editora 34, p. 29

Sandra Silva | ARTE CAPITAL




Peso da Régua, Douro - Libátio



LUZ É TEMPO 2024

Nenhuma matéria é solida. Nem mesmo o tecido que ocupa o lugar que mora no chão, tingido pelo pigmento natural recolhido no próprio lugar habitado, mergulhado nas origens, pertencente ao habitar desta natureza. Efetivamente, vamo-nos eternizando na revelação, refletindo sobre o íntimo, desvelando as cores do locus, e do tempo sobre o locus, tanto como sobre a matéria que o absorveu, o transportou, o tocou.

Encontramo-nos com o silêncio. Não importa esclarecê-lo, não é obscuro.
No tempo que aqui nos atravessa, ele é o revelador da geologia da terra e as suas matérias descritoras da geologia do tempo, como da singeleza do tempo que se adivinha.

Uma exposição é um encontro interior com o processo. Aqui, põe-se em evidência a relação do corpo da Teresa Adão da Fonseca com a natureza que também é sua. Envolvemo-nos e descobrimo-nos nas evidencias e nos vestígios da sua presença e do seu contacto com esta mesma natureza deste lugar. Tateamos com os olhos a sua passagem, a sua poética e a sua metamorfose.


O encontro convida, num primeiro olhar, à descoberta do tempo de imersão no lugar habitado pelas camadas presentes nas marcas sobre o papel durante um limite de tempo que nunca iremos realmente descobrir, porque se confunde com o nosso tempo de leitura. Tanto quanto nunca iremos dominar um certo lugar que nunca vamos realmente conhecer, porque tudo o que habitamos se confunde com as paisagens que nos habitam.

Este é o tempo do diálogo com os gestos de intimidade com a natureza e o fazer e os seus elementos mais puros e originais: vinha, o lagar, a água, a uva, as borras, o vinho. Mas é a luz que constitui a pausa necessária para descobrir, para pensar, para, só depois, emergir e renascer.
A luz é tempo não é apenas uma exposição, é sobretudo uma imersão num universo de questões que se vão intercetando de modo orgânico: a origem, a identidade, a temporalidade, a corporeidade, a matéria, a luz e o que desvela, o pigmento, o amadurecimento, a reação e a (repar)ação.

Efetivamente, dos diálogos cruzados e das interpretações com os pensamentos desta mostra, há muitas notórias singularidades e uma delas tem que ver com uma bela combinação entre a artista e o intimismo das mulheres que nela habitam como Hannah Arendt, Claire Bishop, Inuk, Assinajak, Ana Mendieta, Vivian Sutter, Kate Nweby, Lucy Lippard, Lourdes de Castro, Jessica Warboys, a mãe, a Maria da Libatio e todas as gerações de mulheres da quinta da Vila Franca.

Num convite à vivência efetiva do espaço, os olhos vão-se adaptando lentamente a esta sala e subtilmente vão-se permitindo observar as peças no chão dispostas. Uma metodologia para se ser mais-do-que-humanos que nos retira da perspetiva antropocêntrica a que estamos habituados. O belo já estava aqui. E, se assim o entendermos, podemos dialogar corpo-a-corpo com este relato pessoal e estabelecer uma relação íntima com a natureza, com a terra, com a matéria, com o lugar habitado e com o tempo vivido na primeira pessoa, entre a terra e o ser.

Esta comunhão e imersão do corpo no corpo da matéria, e do corpo-a-corpo, recupera o romantismo e é particularmente bela porque nos aproxima da verdade do nosso ciclo vital, porque projeta o interior sem pudor para o exterior, porque contraria o alcance da imediatez.
Os corpos que se desenharão nesta descoberta serão a última camada desta temporalidade que faz dela uma exposição de corpos invisíveis, não só dos que ficaram impressos, nos do gesto, nos que geram as memórias desta história, mas dos que transcendem o que se vê, o que se traduz. São todos eles, por conseguinte, que iluminam, salvam e curam.

Andreia Garcia, curadoria e texto






Galeria Presença. “O vento, sim, o vento”.


“ Vão como vento

Inane,
vão,

oco,



passa em todo o lado

Dizemos invisível, mas apreendemos os seus efeitos nos mais minúsculos movimentos das coisas.

Movimenta o mundo, dá-lhe vida: basta imaginar esses voos silenciosos das sementes aladas, no seu inefável negócio da dispersão; e as ondas do mar?
E os tufões, furacões e ciclones... tanta energia!

O vento.

Perceber o vento é entrarmos num vertiginoso hiato que vai do sopro que apaga a vela, à rajada que tomba a árvore; do frémito ar nas frestas das janelas ao bramido das tempestades.

Que ventos sopram (d)os desenhos da Teresa? Que desenhos trazem os ventos da Teresa?

Que imagens emergem do índigo depositado na superfície do papel?

Que sons nos perfuram dos gestos frenéticos com escova d ́aço? Que silêncios precisamos para os escutar?

Milhares de sulcos, rápidos arranhões, mergulhos, torções, rasgos, infindáveis injúrias à vulnerabilidade do papel que....

ainda resiste....

O desenho como a vida, no fim, é o que sobra e ainda permanece:

riscos,
manchas,

partículas de terra e pedacinhos de plantas que...

.... irão com o vento...


Samuel Silva